A Inteligência Artificial aplicada ao desenvolvimento de novos produtos despertou nosso interesse desde que vimos a divulgação de um produto para substituição de leite de vaca formulado com ingredientes de origem vegetal inusitados, como o repolho e o abacaxi.
Esta nova tecnologia promete revolucionar a indústria alimentícia, trazendo a perspectiva de desenvolver e formular produtos com plantas e vegetais com o mesmo sabor e textura dos alimentos de origem animal, sem perder valor nutricional nem sensorial. A Inteligência Artificial também tem revolucionado a área de customização e combinação de ingredientes ou fragrâncias, tais como a Diageo liderou um sistema de aprendizagem de “What’s Your Whiskey”, para analisar as preferências de sabor das pessoas em álcool e combiná-las com o seu “uísque perfeito” ou também a combinação de fragrâncias para o seu “perfume perfeito”.
E tudo isso será possível graças a tecnologia que cruza diferentes bases de dados para elaborar formulações inovadoras. Com milhares de plantas cadastradas, os algoritmos de machine-learning analisam em nível molecular a estrutura dos alimentos de origem animal e encontram substitutos vegetais para eles.
Mas como isso funciona na prática?
Do ponto de vista sensorial sabemos que odores são produzidos por misturas complexas de moléculas voláteis que são exaladas dos alimentos e outros materiais. A percepção de odor em humanos é o resultado da ativação de cerca de 400 diferentes receptores olfativos expressos em 1 milhão de neurônios sensoriais olfatórios, os quais enviam sinais para o cérebro que traduzem essas moléculas como um odor característico de um determinado alimento ou material, como por exemplo o do leite ou da carne.
As características de um alimento dependem mais do odor (ou aroma) do que apenas do gosto e juntos eles constituem o sabor ou flavor.
Prever a relação entre a estrutura de uma molécula e seu sabor e odor tem sido alvo de estudo há décadas e permanece sendo uma tarefa muito difícil mesmo com o uso da inteligência artificial. Este problema é um desafio importante na química, impactando a nutrição humana, como também na fabricação de aromas sintéticos, no meio ambiente, na neurociência e na ciência sensorial. Várias metodologias têm sido propostas para superar este desafio.
Na visão e audição, o comprimento de onda da luz e a frequência do som são altamente preditivas da cor e do tom. No entanto de acordo com Keller et al. (2017) atualmente não é possível prever o cheiro de uma molécula a partir de sua estrutura química. Este problema tem sido difícil de resolver quando se trata do olfato porque algumas moléculas com estruturas químicas muito semelhantes podem ser discriminadas por humanos e moléculas com estruturas muito diferentes às vezes produzem percepções quase idênticas.
No entanto em um desafio de predição olfativa realizado por um consórcio liderado pela Rockefeller University, denominado de DREAM, equipes desenvolveram algoritmos de aprendizado de máquina para prever atributos sensoriais de moléculas com base em dados psicofísicos olfativos utilizando recursos de quimioinformática (Keller et al. , 2017).
Os modelos resultantes desse desafio expandiram substancialmente os esforços de modelagem anteriores porque previram com precisão a intensidade do odor e aceitabilidade e também previram com sucesso 8 entre 19 descritores semânticos avaliados (“alho”, “peixe”, “doce”, “fruta”, “queimado”, “especiarias”, “floral” e “azedo”).
Os modelos preditivos permitiram que a engenharia reversa conseguisse identificar moléculas adequadas de um perfil sensorial desejado a partir de grandes bancos de dados de estruturas, daí vem o abacaxi e o repolho utilizados para formulação do substituto do leite que citamos no início deste post.
Embora esses resultados sejam altamente significativos, ainda há muito espaço para melhorar, em particular, nas previsões individuais. Então qual o caminho a ser percorrido ainda para melhorar os modelos altamente preditivos apresentados?
Segundo os autores do desafio, primeiro reconhecendo os limites inerentes ao uso de descritores semânticos para odores, assim dados de percepção alternativos, como classificações de similaridade de estímulos são importantes.
Com base nos resultados dessa pesquisa os autores supõem que para cada característica molecular, deve haver algum mapeamento quantitativo, possivelmente um para muitos. Se as variáveis raramente ou nunca interagem para produzir percepção, como sugerido pelo forte desempenho relativo de modelos lineares nesse desafio, então estes padrões específicos de variáveis devem somar linearmente no estágio de percepção.
Respondendo então a nossa pergunta inicial: Inteligência Artificial entrega Sensorial?
Entendemos que muitas perguntas sobre a percepção sensorial podem ser tratadas com sucesso aplicando a inteligência artificial ou machine learning a um conjunto de dados que incluam descritores mais específicos; estudos envolvendo mais moléculas e percepções sensoriais de pessoas com genéticas diferentes e diversas origens culturais e geográficas.
No entanto devemos lembrar que a avaliação sensorial vai além da percepção fisiológica, avançando também na percepção psicológica. O estímulo produz um efeito sobre o observador e a percepção envolve a filtração, interpretação e reconstrução de uma vasta quantidade de informações que os receptores recebem.
A mente armazena as percepções na memória, as quais são continuamente modificadas pelas novas percepções. O grau de apreciação de um produto está ligado a esse processo de modificação contínua da percepção, portanto impossível de ser 100% previsto por algoritmos.
Sendo assim, entendemos que a inteligência artificial irá sim revolucionar a forma como as indústrias desenvolvem os novos produtos e acelerar, e muito, este processo, no entanto são os resultados da avaliação sensorial que entregam essas informações aos equipamentos, ou seja, os descritores percebidos pelo ser humano são os que alimentam as informações ao equipamento e não vice-versa. E após a calibração da percepção humana ao modelo matemático, ainda é necessário continuar monitorando porque novas relações podem ocorrer entre as moléculas estudadas.
Outra questão importante é que a palavra final será sempre do consumidor real através da avaliação sensorial do produto como um todo. O resultado dessas novas informações sobre as moléculas, entre outros novos recursos tecnológicos trazem a ciência sensorial à frente de todos esses novos desafios. A ciência sensorial precisa estar desde a primeira etapa do desenvolvimento das formulações e também é decisiva em todos os estágios até a etapa final do desenvolvimento de produto.
E você? O que pensa sobre esse assunto? Deixe aqui seus comentários e marque um amigo que se interesse pelo assunto.
Por Dra. Elaine Berges da Silva e Dra. Silvia Deboni Dutcosky
Fonte:
Andrea Keller et al. Predicting human olfactory perception from chemical features of odor molecules. Disponível em: https://science.sciencemag.org/content/355/6327/820.